terça-feira, 31 de outubro de 2023

Realidade virtual em ÀS AVESSAS, de Joris-Karl Huysmans

O trecho abaixo do romance Às avessas, de Joris-Karl Hyusmans, publicado em 1882 é sem dúvida uma antecipação do que se chama hoje de realidade virtual, da inteligência artificial, enfim de uma série de artifícios tecnológicos pelos quais o homem substitui a realidade pela sua contrafação. Como diria o Eclesiastes, nada de novo sob o sol. Isso, por sinal, não é uma coincidência, não tenho por que duvidar que muitas ideias a serviço da tecnologia têm a literatura como fonte.

Às vezes, de tarde, quando por acaso estava desperto e de pé, Des Esseintes, mandava acionar o jogo de canos e condutores que esvaziavam  o aquário e o tornavam a encher de água pura, e ali deitar gotas  de essências coloridas, propiciando-se assim, a seu gosto, os tons verdes ou salobros, opalinos ou prateados, que têm os rios de verdade, de conformidade com a cor do céu, o ardor mais ou menos vivo do sol, as ameaças mais ou menos acentuadas de chuva; de conformidade, numa palavra, com as condições da estação e da atmosfera.

Imaginava então achar-se na entreponte de um brigue e contemplava com curiosidade maravilhosos peixes mecânicos, montados como peças de rolojoaria, que passavam diante do vidro da escotilha e se embaraçavam em falsas ervas; ou então, aspirando o aroma de alcatrão que era insuflado no aposento antes de ele ali entrar, examinava, dependuradas à parede, gravuras coloridas representando, como nas agências de paquetes ou do Lloyd, barcos a vapor  em rota para Valparaíso e La Plata, e tabelas enquadradas nas quais estavam assinalados os itinerários da linha do Royal Mail Steam Packet, das companhias Lopez e Valéry, os fretes e as escalas de serviços postais do Atlântico.

Depois, quando se cansara de consultar esses indicadores, descansava a vista olhando os cronômetros e as bússolas, os sextantes e os compassos, as chúmeas e os mapas espalhados por sobre uma mesa acima da qual se elevava um único livro, encadernado em pele de foca, as Aventuras de Gordon Pym, especialmente impresso para ele em papel raiado de pura fibra, escolhido folha por folha, com uma gaivota em filigrana.

Podia divisar, finalmente, varas de pescas, redes curtidas, rolos de velas ruças, uma âncora minúscula de cortiça, pintada de preto, tudo isso amontoado  perto da porta que comunicava com a cozinha por um corredor guarnecido de estofo acolchoado que absorvia, tanto quanto o corredor entre a sala de jantar e o gabinete de trabalho, todos os odores e todos os ruídos.

Ele obtinha assim, sem sair, de casa, as sensações rápidas, quase instantâneas, de uma viagem de longo curso, e esse gosto do deslocamento que só existe, em suma, na recordação, quase nunca no presente, no próprio instante em que se efetua; desfrutava-o plenamente, à vontade, sem fadiga, sem preocupações, naquela cabine cuja desordem rebuscada, cujo arranjo transitório e instalação como que temporária correspondiam assaz exatamente à sua estada passageira ali, ao tempo limitado de suas refeições, e contrastava de maneira absoluta com o seu gabinete de trabalho, numa peça definitiva, arrumada, bem assente, equipada para a firme manutenção de uma existência caseira. 

O movimento lhe parecia, de resto, inútil, e a imaginação podia, no seu entender, facilmente substituir-se à realidade vulgar dos fatos. Reputava ser possível contentar os desejos tidos por mais difíceis de satisfazer na vida normal mediante um ligeiro subterfúgio, uma sofisticação aproximativa do objeto perseguido por eles. Assim é que, de toda evidência, os gastrônomos se deliciam hoje em dia, nos restaurantes renomados pela excelência de suas adegas, bebendo vinhos de marca fabricados com as baixas vinhaças tratadas de acordo com o método do sr. Pasteur. Ora, verdadeiros ou falsos, esses vinhos têm o mesmo aroma, a mesma cor, o mesmo buquê, e, por conseguinte, o prazer que se experimenta degustando tais beberagens alteradas e factícias é absolutamente idênticos àqueles que se experimentaria saboreando o vinho natural e puro, inecontrável mesmo a peso de ouro. 

Transportando este capcioso desvio, esta habilidosa mentira para o mundo do intelecto, ninguém põe em dúvida que se possa, tão facilmente quanto no mundo material, desfrutar delícias quiméricas semelhantes, em tudo e por tudo, às verdadeiras; ninguém põe em dúvida, por exemplo, que uma pessoa possa se entregar a longas explorações, desde o cantinho de sua lareira, auxiliando, se necessário, o espírito renitente ou lento com a leitura sugestiva de uma obra que narre viagens a lugares longínquos; ninguém põe em dúvida, tampouco, que se possa -- sem sair de Paris -- desfrutar a benéfica impressão de um banho de mar: basta ir, de boa-fé, ao banho Vigier, instalado num barco em pleno Sena. 

Lá, mandando-se salgar a água da banheira e acrescentar-lhe, de acordo com a fórmula do Codex, sulfato de sódio, cloridrato de magnésio e de sódio; tirando-se de uma caixa, cuidadosamente cerrada por um passo de de rosca,  um rolo de cordel ou um pedacinho de cabo que se foi procurar especialmente numa dessas grandes cordoarias cujos vastos armazéns e subsolos recendem a odores de maresia e de porto; apirando-se estes perfumes conservados ainda pelo cordel ou pedaço de cabo; consultando-se a fotografia exata do cassino e lendo-se com ardor o guia Joanne que descreve as belezas da praia onde se desejaria estar; deixando-se embalar pelas vagas que se ergue, na banheira, a esteira dos barcos de passeios  ao passarem rente à barcaça dos banhos; escutando-se, por fim, os gemidos do vento engolfado sob os arcos e o ruído surdo dos ônibus que rolam, a dois passos acima de vós, sobre a ponte Royal, a ilusão de mar é inegável, imperiosa, segura.

Tudo está em saber a pessoa arranjar-se, concentrar seu espírito num único ponto, abstrair-se o suficiente para provocar a alucinação e poder substituir a realidade propriamente dita pelo sonho dela.

O artifício parecia outrossim a Des Esseintes a marca distintiva do gênio humano.

Como ele costumava dizer, a natureza já teve a sua vez; cansou definitivamente, pela desgastante uniformidade das suas paisagens e dos seus céus, a paciência atenta dos refinados. No fundo, que chatice de especialista confinado a seu papel; que mesquinharia de lojista apegando-se a determinado artigo com exclusão dos demais; que monótona coleção de prados e árvores, que banal agência de montanhas e mares!

Não existe, aliás, nenhuma de suas invenções reputada tão sutil ou grandiosa que o gênio humano não possa criar; nenhuma floresta de Fontainebleau, nenhum luar  que cenários inundados de jatos elétricos não reproduzem; nenhuma cascata que a hidráulica não imite se nisso se empenhar; nenhum rochedo que o papelão não assimile; nenhuma flor que tafetás ilusórios e delicados papéis pintados não igualem! 

Não há dúvida de que essa sempiterna maçadora esgotou a indulgente admiração dos verdadeiros artistas e é chegado o momento de substituí-la, tanto quanto possível, pelo artifício.  

Penguin-Companhia,  2011, tradução de José Paulo Paes, pp. 86-89

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Assassinato refratado

O trecho abaixo faz parte do livro A sagração da primavera, de Modris Eksteins, na tradução de Igor Barbosa, que aliás deveria ter sido premiada. Bem, resolvi destacá-la pela forma como nos traz à memória um acontecimento de grande vulto no Brasil, em 1929, quando uma mulher, alvo de diversas matérias escritas por Mário Rodrigues acerca do seu desquite, vai à redação para matá-lo e, sendo atendida pelo seu filho Roberto Rodrigues, resolve no ato disparar a arma contra ele mesmo, dando-se assim, ela mesma o disse ao ser presa, por satisfeita.

Calmette atacaria repetidamente ao longo de 1912 e 1913. Quando Auguste Rodin saiu em defesa de Nijinsky, Calmette o repreendeu como um diletante imoral que esbanjava verbas públicas. Em dezembro de 1913, Calmette iniciaria sua última campanha, desta vez um ataque contra Joseph Caillaux, ex-primeiro ministro das finanças no novo governo de Doumergue. Em 16 de março de 1914, Henriette Caillaux, esposa do ministro, pegou um táxi para a redação do Figaro na Rue Drouot, esperou pacientemente por uma hora para ver o editor-chefe, depois entrou com ele em seu escritório particular e esvaziou sua pistola automática nele. Atingido por quatro dos seis tiros disparados, ele morreu naquela noite.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Lançamento de Rezas, de João Filho, em Salvador, hoje

 



Reza VIII -- João Filho

Pai, aqui estou, imundo como todos.
A sujeira orgulhosa de uma vida.
O refrão dessa vida é choro e choro,
vai subindo de um poço sem saída.

Venho pedir. Não sei pedir, imploro,
pedir como se fosse despedida.
Ensina-me a pedir o que não morre,
e o que morre ser minha medida.

Pai, aqui estou. Repito essas misérias,
precária como incerta é a matéria,
quero chorar por Ti e não por mim.

Que o mundo diminua e cresça a Cruz,
num incêndio minúsculo de luz --
fósforo que fulgura antes do fim!
 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Livre de atualizações

No dia seguinte partiu Félix para Tijuca, onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois. Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade: não leu jornais nem abriu cartas de amigos.

A ressurreição, de Machado de Assis, capítulo IV

Invejável esse Félix, embora fosse, como se diz na linguagem jovem de hoje um curtidor(hoje talvez não tão jovem), não era escravo de alguns caprichos das agitações que cercam pessoas de sua personalidade e condição financeira. Como o informa o trecho acima, foi capaz de ir a um lugar aprazível, retirado, longe das baladas da época, e não assistir ao Jornal Nacional nem acompanhar as notícias eternamente fresquinhas da internet nem abrir o whatsapp. E para completar,  não sofria do mal que aflige as  personagens de Houllebecq, que apostam todas as fichas no turismo:

Olhe, os meus dois pólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca passei  desses dois extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas eu acho felicidade nessa mesma monotonia.


domingo, 3 de setembro de 2023

Trecho de "Só que um pouco pior. Resposta a alguns amigos", de Michel Houellebecq

(...) Sobre a peste [Covid 19] tivemos muita coisa, ao longo dos séculos, os escritores sempre se interessaram  pela peste. Mas sobre isto, duvido muito. Para começar, não acredito nem por um segundo em declarações do tipo "nunca mais nada será como dantes". Pelo contrário, tudo ficará exactamente como era. O desenrolar desta epidemia é até notavelmente normal. O Ocidente não é por direito divino, para toda a eternidade, a zona mais rica e desenvolvida do mundo; isso acabou, já há algum tempo, não é propriamente novidade. Se examinarmos até, em detalhe, o que se passa, a França sai-se um pouco melhor do que a Espanha e do que a Itália, mas menos bem do que a Alemanha; também aqui não encontramos propriamente uma grande surpresa.

Pelo contrário, o coronavírus deveria ter, como principal resultado, a aceleração de certas mutações em curso. Desde há alguns anos, o conjunto das evoluções tecnológicas, sejam elas menores (o streaming de vídeo, o pagamento sem contacto) ou maiores (o teletrabalho, as compras pela Internet, as redes sociais), tiveram como principal consequência (ou principal objectivo?) diminuir os contactos materiais, e sobretudo os contactos humanos. A epidemia do coronavírus  oferece uma magnifica razão de ser para esta tendência pesada: a de uma certa absolescência que parece afectar as relações humanas. O que me faz pensar numa comparação luminosa que encontrei num texto anti-PMA [Procriação Medicamente Assistida, nota do tradutor] redigida por um grupo de activistas denominado "Os chimpanzés do futuro"(descobri estas pessoas na Internet; nunca disse que a Internet só tinha inconvenientes). Por isso, vou citá-los: "Dentro em breve, fazer filhos pelos próprios meios, gratuitamente  e ao calhas, parecerá tão incongruente como hoje andar à boleia sem uma plataforma web." A partilha de carros, a partilha de aluguer da casa, esse tipo de coisas, enfim, temos as utopias que merecemos, mas passo bem sem elas.

Será igualmente falso afirmar que redescobrimos o trágico, a morte, a finitude, etc. A tendência desde há meio século, bem descrita por Philippe  Ariès, foi a de dissimular a morte, tanto quanto possível; pois bem, nunca a morte terá sido tão discreta como nas últimas semanas. As pessoas morrem sozinhas nos seus quartos de hospital ou de EHPAD [... equivalentes a casas de repouso ou lares de terceira idade, nota do tradutor], enterram-nas assim que morrem (ou serão cremadas? a cremação está mais conforme ao espírito do tempo), sem chamar ninguém, em segredo. Mortos que partem sem que haja testemunhos disso, as vítimas resumidas a uma unidade nas estatísticas dos mortos diários, a angústia que se espalha pela população à medida que os números totais aumentam, tudo isto tem qualquer coisa de estranhamente abstracto.

Um outro número ganhou importância nestas semanas, o da idade dos doentes. Até quando é suposto reanimá-los e tratá-los? Onde colocar o limite? Nos 70, nos 75, nos 80 anos? Isso depende, aparentemente, da região do mundo onde se vive; mas nunca, em todo caso, foi dito com um tão tranquilo impudor que nem todas as vidas valem o mesmo; que a partir de uma certa idade (70, 75, 80 anos?)), é um pouco como se já estivéssemos mortos.

Todas estas tendências, já o disse, existiam antes do coronavírus; mas manifestaram-se agora com uma maior evidência. Nós não vamos acordar, depois do confinamento, num mundo novo; será o mesmo, só que um pouco pior.

Esta carta foi lida por Augustin Trapenard, aos mícrofones da France Inter, a 4 de Maio de 2020

Tradução de José Mário Silva, Intervenções, Alfaguara, 2021

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

IMPRENSA INVESTIGATIVA


Para nossa imprensa, tão investigativa, tão científica, a CNH vencida é sintoma de psicopatia aguda e, automaticamente, o sujeito perde habilidade de guiar um automóvel. Tão ciosa do Estado laico, é a primeira a se submeter ao feiticismo documental, de maneira que é muito comum ao relatar um acidente logo informar que o motorista não tinha CNH ou que esta estava vencida, como se o documento em si desse habilidade ou capacidade de condução, quando na verdade atesta essa capacidade, sem no entanto garantir isso. Em tempo, o ministro mais empático do universo, empatias tantas, imensas, que cada vez mais lhe avolumam a pança, guiando-se pelo clamor dos xamãs cartoriais, que vai da imprensa às subcelebridades do momento, providenciou caninamente a demissão dos três policiais, um dos quais Kleber Nascimento Freitas, o perigoso da CNH vencida, que em verdade é incapaz, sim, de matar uma mosca, uma das pessoas mais gentis que conheço, muito dedicado ao próximo, um ser humano exemplar.

Clarice pura empatia

Numa cena da série Clarice, disponível na Prime Vídeo, baseada no filme e no livro O silêncio dos inocentes, aparece a personagem  Julia, que é  travesti, interpretada por um ator igualmente travesti chamado Jen Richards. A série, que não é lá grande coisa, ao menos é do tipo que leva o espectador a lhe acompanhar o desenvolvimento da trama. 

Acontece, porém, que em determinado momento essa personagem, ao colaborar nas investigações empreendidas por uma equipe do FBI contra os atos da empresa da qual é funcionária, é chantageada pelo seu chefe malvadão, que deixa claro saber que na verdade ela é ele, e que se não parar de colaborar com as investigações, vai contar para todo mundo que ela é ele, o que a deixa muito assustada, afinal era um segredo que guardou a sete chaves para evitar perseguições e preconceitos. O curioso é que, para quem quer manter segredo, a personagem, ainda que ande bem maquiada, use roupas femininas, roupas chiques, tenha gestos delicados, é visivelmente troncuda, corpulenta mesmo, rosto viril, de modo que não se entende como passou pela cabeça do chefe malvadão chantageá-la com algo que é muito evidente e ela, por sua vez, ficar com medo disso. É algo tão absurdo que nos episódios seguintes essa chantagem não mais é mencionada, é como se nunca tivesse havido, e o malvadão resolve fazer o que era mais lógico fazer, assustá-la com o seu poder econômico e criminoso. Claro que essa chantagem fuleira foi uma maneira evidente de forçar a nota e assim denunciar o preconceito que condena os travestis à invisibilidade. Outra coisa, já entra em cena dando um baita sermão em Clarice por esta nada fazer contra os comentários na imprensa a respeito de Bufallo Bill ser travesti, levando, por conseguinte, a população ao erro de acreditar que todo travesti é como ele um assassino de fato ou em potencial, sermão esse que é também uma indireta tanto ao autor do livro, em que a série se baseia, como ao filme O silêncio dos inocentes, de 1991. 

Não há nenhum problema nem deveria causar espécie que travestis possam trabalhar como atores e desempenhar papel de alguma personagem travesti. O problema é que em vez de se criar uma narrativa com essa personagem, usam-na como chicote contra os preconceitos da sociedade ou, como se diz, sua transfobia, abrindo-se mão de se construírem personagens ou  de se fazerem  filmes ou séries, substituindo-os por campanhas de conscientização ou de treinamento de sensibilidades, no melhor estilo 1984 ou como o procedimento "Ludovico", do livro Laranja mecânica.

terça-feira, 15 de agosto de 2023


 

Colheita

Doce sol vermelho
maduro tomate
caído no verde
pelo céu da tarde.

Um verme aguçado
por flava vontade 
se faz de cometa,
quer a sua parte.

E a grama apodrece
no roxo azulado,
e mil borboletas
vão surgindo em astro.

À noite, o poeta,
com olhos cerrados,
vai colher o fruto
em seu peito amargo.


Para ler esta e outras preciosidades do novo livro de Márcio Gómez Benito, vá ao site da Mondrongo e adquira o seu. É verdadeiramente um livro de quem leva o leitor a sério. 


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Misticismo da cabeça grande

Lembro-me que li em 1988 dois livros curiosos, a respeito dos quais nunca ouvi falar nada nem na época nem depois, apesar de serem, creio, best-sellers, algo muito em voga nos anos 80; e um dos gêneros que faziam muito sucesso na época lidavam com ocultismo, e uma espécie de mística de tubo de ensaio, um sub-Lugones -- lede Forças estranhas para lhe perceber o sobrenaturalismo científico --, aquela mística que não acredita em Deus nem em alma imortal e que procura compensar essa descrença apostando todas as fichas num cérebro imortal. Não voltarei a consultar esses livros, pois é da biblioteca de meu pai, que ficou lá na Bahia. 

Um deles é A alma de Ana Klane. Como sou fascinado por narrativas de terror ou que tratam de fenômenos sobrenaturais, me chamou a atenção aquele livrinho, de capa branca, com a ilustração do rosto de uma garotinha, algo meio solene, meio espectral, a brotar, se não me engana, de um espaço de tribunal. Afinal, mais ou menos da metade em diante do livro, é uma narrativa de tribunal. A editora é Abril, daquelas edições que eram vendidas em banca de revistas,  boa parte das capas com fundo branco. O autor não sei quem é nem mesmo na época prestei atenção ao nome dele.

Do que me lembra, é a história de uma garota de dez anos chamada Ana Klane, uma criança precoce, superdotada, com rara desenvoltura intelectual, que não tem nenhum interesse por assuntos infantis, tão-somente por ciências e matemáticas, espécie de Wandinha da Netflix sem a lacração barata desta, que costumava conversar com o doutor, ou seria senhor?, Klane, seu pai, a respeito de grandes assuntos e se divertiam com jogar xadrez. Se bem me lembra, o sr. Klane era físico. Prossigamos: certo dia Ana desmaia ou sente algo na cabeça, é levada para um hospital e a  equipe médica faz uns exames por meio dos quais descobre que ela tem um tumor no cérebro, e conclui que deve ser submetida a  uma cirurgia a fim de extrair esse tumor. Caso contrário, iria morrer. Advertiram, porém, que essa cirurgia poderia resultar em certa perda na capacidade intelectual. Essa perda intelectual foi a causa de todo drama moral que levou o sr. Klane a se rebelar contra as recomendações médicas, não a possibilidade de ela morrer durante o procedimento cirúrgico.

Essa rebeldia se intensifica quando Ana, que sabia controlar o próprio cérebro e por meio deste o funcionamento do corpo, descobre que poderia com essa capacidade matar o tumor. Ana chama o pai ao hospital e explica-lhe o procedimento, que consiste em desviar o percurso do sangue e, evitando que o sangue irrigasse o tumor, este logo morreria, tornando assim a cirurgia um procedimento dispensável. O senhor Klane, aliviado com a explicação e feliz porque sua filha não ficaria burra, convoca a equipe médica para a qual explica o procedimento. Esta, porém, não acreditando que um ser humano é capaz de controlar o fluxo sanguíneo com a força do cérebro, expõe esse ceticismo ao pai e, diante da resistência deste ao procedimento, resolve recorrer à justiça para enfim realizar a cirurgia. Apesar do brilhantismo da exposição que o senhor Klane fez a respeito do procedimento, o juiz decide a favor da equipe médica.

Essa equipe, amparada pela decisão judicial, faz a cirurgia, extraindo o tumor da menina. O pai, por sua vez, fica acabrunhado, amaldiçoando pelos cantos, revoltado com a obtusidade médica incapaz de entender que o ser humano, com força de vontade e disciplina, pode controlar as funções do corpo com  a mente. Ana é liberada do hospital, o senhor Klane leva-a para casa onde, poucos dias após a alta, começam a jogar xadrez. Ana comete um erro muito sutil na jogada. Ela se perturba. O mundo do sr. Klane cai naquele exato instante. Sua filha ficou burra. O senhor Klane passa a vê-la como um ser imprestável, sem o intelecto poderoso de outrora, ainda que o intelecto que lhe restasse fosse mesmo assim bem mais alto que a média ou mesmo mais alto que o intelecto de todos os gênios que já passaram pela terra, Ana aos olhos do pai era uma menina vegetativa e toma uma decisão corajosa para evitar que sua filha vivesse com tamanha mácula: matá-la, e dá-lhe um tiro.

Após esse ato, o senhor Klane é preso, ou ele mesmo se entrega antes mesmo de a polícia pensar em procurá-lo. Ao tribunal, ele explica, com toda a autoridade de físico renomado, que não cometeu assassinato algum, que os médicos, por o não ouvirem, deixaram a menina retardada, que ela na verdade já estava morta, pois a alma já lhe havia abandonado o corpo durante o procedimento, aquela coisa meio Marco Aurélio de Mello, "sem cérebro sem vida", mas o jurado não aceitou o argumento, viu nele nada mais do que um assassino e decidiu que ele é culpado. Ao ouvir a decisão, o senhor Klane reage com violência e um guarda que cuida da segurança do tribunal o mata com um tiro. Esse guarda, que havia se comovido ou se impressionado com a defesa do senhor Klane, fica perturbado, mas poucos dias após o ato, é visitado pela alma -- ou a parte espectral do cérebro, sei lá -- do senhor Klane que o consola, dizendo que ele não fizera nada de errado com tê-lo matado, uma vez que se encontrava agora numa condição superior, sem sofrer os limites do corpo, é o pensamento em estado puro, que sai voando por aí, expandindo-se sem as limitações do mundo físico.

Do outro livro, do qual não me lembra o título, mas me recorda o nome do autor,  Lopsang Rampa, que é uma obra teórica, só me vem à cabeça uma única passagem, em que ele ensina a técnica para se atravessarem paredes. Ah, eu me lembro que ele falava também do corpo astral, de como alguém poderia deslocar, quando bem entendesse, esse corpo e sair por aí, conhecendo outros mundos, outros países, enquanto o corpo físico ficava na cama dormindo. Voltando à técnica, bastava que o homem se concentrasse, talvez olhando para um ponto específico da parede e concentrasse sua força mental para fragmentar o próprio corpo em várias moléculas, ou átomos, melhor dizendo, em vários pontinhos microscópicos que se separariam uns dos outros possibilitando passar pelos poros da parede e, uma vez do outro lado, unir-se-iam outra vez restaurando ao corpo o mesmo grau de integridade com que se encontrava quando estava do outro lado da parede. Cheguei a tentar fazer isso, mas tudo que consegui foi continuar a ver a parede e concluí que seria mais fácil ou abrir a porta ou pular a janela. Podia não ter o mesmo charme de Gasparzinho, mas ao menos chegaria ao outro lado em bem menos tempo.

Embora eu tivesse anunciado dois livros, vale mencionar um terceiro, não sei o nome do autor, nem do que se trata, uma vez que não consegui ultrapassar das primeiras linhas, além do que me bastava recordar o título retumbante: O livro que mata a morte.

sábado, 15 de julho de 2023

Heberto Sales, parafraseando Rui Castro, no melhor do seu mau humor

Soube, hoje, da morte do talvez último sobrevivente dos meus, de uma ou de outra forma, escassos inimigos. Que Deus, em sua infinita misericórdia, receba a alma desse desgraçado.

Herberto Sales, Subsidiário 3

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Pedra Bonita e sua infição

No termo do Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário -- a Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata,  mas cumulando de riquezas os que houvessem  contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de nevrose...

O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e afirmam os jornais do tempo, em cópia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar inficionado."

in "A Pedra Bonita e Monte Santo", Os sertões, de Euclides da Cunha, edição crítica e Organização Walnice Nogueira Galvão, Sesc Ubu

O trecho em questão impressiona não apenas pela natureza escultural da narrativa, como se o parnasianismo tivesse se realizado em prosa, mas pela forma como a encerra, declarando que era impossível, mesmo depois de tudo acabado, a "permanência no lugar inficionado." Não sei se Euclides da Cunha tinha isto em mente quando assim encerrou esse relato, porém, a ideia mesmo de o lugar permanecer "inficionado" tempos após o ocorrido, é assombrosa, de uma força poética a que talvez poucos poemas tivessem alcançado, a saber, é algo como um símile que ilustra esse sacrifício tenebroso que ainda iria assombrar o país por muito tempo, moldando-lhe o espírito, como de resto aconteceu à personagem Quaderna, do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna -- como aliás, ao que parece, é a expressão de um drama íntimo do mesmo Suassuna que carregou por décadas a fio a dor pelo pai assassinado e --, antes dele, no díptico de José Lins do Rego, Pedra Bonita e Cangaceiros, em que uma família inteira infeccionou-se por aquele massacre, inficionando, por sua vez, todos ao redor, dando origem a cangaceiros e estupradores, também apodrecendo as instituições, e por fim corroendo a alma da matriarca, até então uma mulher de muita fé, que, não suportando mais o peso dessa história e suas consequências, tomada pelo ressentimento, pelo ódio e pela loucura, com ver seus filhos serem reduzidos a meras máquinas de matar, se enforca numa casinha da fazenda em que se escondia das forças do governo que estavam caçando seu filho Aparício, chefe do cangaço.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Os longos vazios, uma nota sobre um conto de Clarice Lispector

Lendo o conto "O triunfo", de Clarice Lispector, do livro Primeiras histórias, me lembrei do que Pedro Sette-Câmara comentou no Telegram sobre a primeira parte de As horas de Katharina, de Bruno Tolentino, sobre os silêncios que hoje, na era das telas e toda sorte de diversão, não temos mais, e como isso nos levava a ser bons observadores, que éramos capazes de ter atenção, de nos interessar pelas coisas, de olhar demoradamente para elas. A história narrada no conto é muito simples, uma mulher acorda numa casa retirada, numa rua silenciosa, talvez uma casa de campo, uma chácara, e dá-se conta de que o amado dela não está mais ao seu lado, e lembra-se de que se irritara com ela, alegando que lhe tirava a concentração necessária para escrever um romance, que ela sempre se mostrava solícita nos momentos em que ele não queria conversar com ninguém, e resolve ir embora, para um lugar onde suas aspirações intelectuais fossem plenamente respeitadas, e ela, por sua vez, alimenta a esperança de que ele volte (esperança essa que aumenta quando depara, decepcionada, uma confissão de sensação de "mediocridade" escrita num papel que por acaso encontrara, tornando-o assim uma figura por algum momento desinteressante, vulnerável), que lhe diga que foi um mal entendido, uma brincadeira e, enquanto isso, olha as coisas ao redor, lava roupa, toma banho... Enfim, em meio a tanto silêncio, o leitor não deve esperar as peripécias narrativas, mas, por outro lado, depara as modulações do espírito humano muito bem observadas e descritas, e muito bem mimetizadas por uma escrita sinuosa, mas uma sinuosidade sutil, sem obscuridades, que mostra domínio pleno da música da língua. Tenho a impressão de que na era da internet escrever assim e sobre esses assuntos não é mais possível, ao menos não me parece crível.

Da Pedra Bonita e Os cangaceiros, na revista Unamuno


 Mais um texto de minha autoria para a revista Unamuno, dessa vez sobre Pedra bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego. Segue o link: https://unamuno.com.br/cangaceiros-pedra-bonita/

quarta-feira, 5 de abril de 2023

MEU TEXTO SOBRE BRUNO TOLENTINO PARA A FAUSTO MAG

Recebi da Fausto Mag, na pessoa de Eliana de Castro, sua criadora, o convite para escrever um texto introdutório à obra de Bruno Tolentino, na altura de seu aniversário em 12 de novembro de 2020, revista esta em que podemos ler ensaios e entrevistas de grandes figuras do mundo da cultura, com destaque à entrevista com Harold Bloom, sim, uma entrevista exclusiva para a revista, e com Antônio Risério. Aproveitando o lançamento que a editora É Realizações fez de As horas de Katharina, pelo selo Filocalia, para inaugurar a publicação das obras completas de Bruno Tolentino, é oportuno resgatar esse texto que a Fausto Mag me honrou com seu acolhimento. Para lê-lo, neste link: https://faustomag.com/bruno-tolentino-a-guisa-de-apresentacao/

sexta-feira, 31 de março de 2023

UMA ARTE, DE ELIZABETH BISHOP, POR IGOR BARBOSA

Só tomei conhecimento deste poema pela versão que Bruno Tolentino lhe fez e publicou no Mundo como idéia. Se uso a palavra versão é porque, embora Tolentino resgate para o vernáculo a matéria do poema original é, sem dúvida, outro poema que compôs sobre o mesmo motivo. E não sou eu que o digo, é o mesmo poeta que, entre parênteses, acrescenta um subtítulo, "Uma arte toda sua"; depois li as traduções de Paulo Henriques Brito e de Nelson Ascher. Agora, saindo do forno, ou melhor do whatsapp de  Igor Barbosa, esta tradução cuja qualidade e força poética renova o interesse de quem lê poesia. É ocioso dizer que uma nova tradução de um mesmo poema não é como ler um mesmo poema várias vezes, posto que isso seja também uma experiência enriquecedora que nos mostra desse poema algo que se não percebeu nas leituras anteriores, é algo como ouvir um concerto executado por diversos maestros, que é o mesmo e também carrega a assinatura pessoal de cada regente.


Nada dificultosa é a arte de perder;
tantas coisas contêm a própria perdição
que, uma vez perdidas, mal fazem sofrer.

Perde algo todo dia, aceita que vais ter
chaves de casa e horas fugindo-te às mãos;
Nada dificultosa é a arte de perder.

Pratica, então, mais vezes e melhor perder;
lugares, nomes, e o destino ao qual não
chegaste. Tudo isso pouco faz sofrer.

Perdi o relógio de mamãe. E até, vem ver,
a última ou quase última habitação.
Nada dificultosa é a arte de perder.

Duas cidades que amei não vou mais ter,
reinos que possuí, dois rios, uma nação.
Suspiro, mas tudo isso pouco faz sofrer.

- E mesmo te perder (a voz risonha, o ser
que eu amo). Eu não devo mentir. Claro que não
é tão dificultosa a arte de perder,
mesmo que (Escreve!) assim te possa parecer.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

AS HORAS DE KATHARINA, DE BRUNO TOLENTINO, EM NOVA EDIÇÃO




Soube hoje pelo twitter atenadíssimo de Martim Vasques que a editora É Realizações, pelo selo Filocalia, disponibilizou para pré-venda a reedição de As horas de Katharina - A Andorinha, ou: A Cilada de Deus, de Bruno Tolentino, com previsão de lançamento para 05 de março de 2023. Edição essa que é resultado do empenho incansável do mesmo Martim Vasques, ensaísta que publicou, entre outros o Poeira da glóriae um dos mais atuantes críticos culturais do país, do editor e ensaísta Guilherme Malzoni Rabello e Renato José de Moraes, autor do romance Claridade, responsáveis pela parte executiva da edição, e que também participaram, junto com Juliana P. Perez, pesquisadora e professora da USP, e este que vos escreve, na pesquisa, elaboração das notas e estabelecimento de texto.