quarta-feira, 16 de agosto de 2023

IMPRENSA INVESTIGATIVA


Para nossa imprensa, tão investigativa, tão científica, a CNH vencida é sintoma de psicopatia aguda e, automaticamente, o sujeito perde habilidade de guiar um automóvel. Tão ciosa do Estado laico, é a primeira a se submeter ao feiticismo documental, de maneira que é muito comum ao relatar um acidente logo informar que o motorista não tinha CNH ou que esta estava vencida, como se o documento em si desse habilidade ou capacidade de condução, quando na verdade atesta essa capacidade, sem no entanto garantir isso. Em tempo, o ministro mais empático do universo, empatias tantas, imensas, que cada vez mais lhe avolumam a pança, guiando-se pelo clamor dos xamãs cartoriais, que vai da imprensa às subcelebridades do momento, providenciou caninamente a demissão dos três policiais, um dos quais Kleber Nascimento Freitas, o perigoso da CNH vencida, que em verdade é incapaz, sim, de matar uma mosca, uma das pessoas mais gentis que conheço, muito dedicado ao próximo, um ser humano exemplar.

Clarice pura empatia

Numa cena da série Clarice, disponível na Prime Vídeo, baseada no filme e no livro O silêncio dos inocentes, aparece a personagem  Julia, que é  travesti, interpretada por um ator igualmente travesti chamado Jen Richards. A série, que não é lá grande coisa, ao menos é do tipo que leva o espectador a lhe acompanhar o desenvolvimento da trama. 

Acontece, porém, que em determinado momento essa personagem, ao colaborar nas investigações empreendidas por uma equipe do FBI contra os atos da empresa da qual é funcionária, é chantageada pelo seu chefe malvadão, que deixa claro saber que na verdade ela é ele, e que se não parar de colaborar com as investigações, vai contar para todo mundo que ela é ele, o que a deixa muito assustada, afinal era um segredo que guardou a sete chaves para evitar perseguições e preconceitos. O curioso é que, para quem quer manter segredo, a personagem, ainda que ande bem maquiada, use roupas femininas, roupas chiques, tenha gestos delicados, é visivelmente troncuda, corpulenta mesmo, rosto viril, de modo que não se entende como passou pela cabeça do chefe malvadão chantageá-la com algo que é muito evidente e ela, por sua vez, ficar com medo disso. É algo tão absurdo que nos episódios seguintes essa chantagem não mais é mencionada, é como se nunca tivesse havido, e o malvadão resolve fazer o que era mais lógico fazer, assustá-la com o seu poder econômico e criminoso. Claro que essa chantagem fuleira foi uma maneira evidente de forçar a nota e assim denunciar o preconceito que condena os travestis à invisibilidade. Outra coisa, já entra em cena dando um baita sermão em Clarice por esta nada fazer contra os comentários na imprensa a respeito de Bufallo Bill ser travesti, levando, por conseguinte, a população ao erro de acreditar que todo travesti é como ele um assassino de fato ou em potencial, sermão esse que é também uma indireta tanto ao autor do livro, em que a série se baseia, como ao filme O silêncio dos inocentes, de 1991. 

Não há nenhum problema nem deveria causar espécie que travestis possam trabalhar como atores e desempenhar papel de alguma personagem travesti. O problema é que em vez de se criar uma narrativa com essa personagem, usam-na como chicote contra os preconceitos da sociedade ou, como se diz, sua transfobia, abrindo-se mão de se construírem personagens ou  de se fazerem  filmes ou séries, substituindo-os por campanhas de conscientização ou de treinamento de sensibilidades, no melhor estilo 1984 ou como o procedimento "Ludovico", do livro Laranja mecânica.

terça-feira, 15 de agosto de 2023


 

Colheita

Doce sol vermelho
maduro tomate
caído no verde
pelo céu da tarde.

Um verme aguçado
por flava vontade 
se faz de cometa,
quer a sua parte.

E a grama apodrece
no roxo azulado,
e mil borboletas
vão surgindo em astro.

À noite, o poeta,
com olhos cerrados,
vai colher o fruto
em seu peito amargo.


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