quinta-feira, 20 de julho de 2023

Misticismo da cabeça grande

Lembro-me que li em 1988 dois livros curiosos, a respeito dos quais nunca ouvi falar nada nem na época nem depois, apesar de serem, creio, best-sellers, algo muito em voga nos anos 80; e um dos gêneros que faziam muito sucesso na época lidavam com ocultismo, e uma espécie de mística de tubo de ensaio, um sub-Lugones -- lede Forças estranhas para lhe perceber o sobrenaturalismo científico --, aquela mística que não acredita em Deus nem em alma imortal e que procura compensar essa descrença apostando todas as fichas num cérebro imortal. Não voltarei a consultar esses livros, pois é da biblioteca de meu pai, que ficou lá na Bahia. 

Um deles é A alma de Ana Klane. Como sou fascinado por narrativas de terror ou que tratam de fenômenos sobrenaturais, me chamou a atenção aquele livrinho, de capa branca, com a ilustração do rosto de uma garotinha, algo meio solene, meio espectral, a brotar, se não me engana, de um espaço de tribunal. Afinal, mais ou menos da metade em diante do livro, é uma narrativa de tribunal. A editora é Abril, daquelas edições que eram vendidas em banca de revistas,  boa parte das capas com fundo branco. O autor não sei quem é nem mesmo na época prestei atenção ao nome dele.

Do que me lembra, é a história de uma garota de dez anos chamada Ana Klane, uma criança precoce, superdotada, com rara desenvoltura intelectual, que não tem nenhum interesse por assuntos infantis, tão-somente por ciências e matemáticas, espécie de Wandinha da Netflix sem a lacração barata desta, que costumava conversar com o doutor, ou seria senhor?, Klane, seu pai, a respeito de grandes assuntos e se divertiam com jogar xadrez. Se bem me lembra, o sr. Klane era físico. Prossigamos: certo dia Ana desmaia ou sente algo na cabeça, é levada para um hospital e a  equipe médica faz uns exames por meio dos quais descobre que ela tem um tumor no cérebro, e conclui que deve ser submetida a  uma cirurgia a fim de extrair esse tumor. Caso contrário, iria morrer. Advertiram, porém, que essa cirurgia poderia resultar em certa perda na capacidade intelectual. Essa perda intelectual foi a causa de todo drama moral que levou o sr. Klane a se rebelar contra as recomendações médicas, não a possibilidade de ela morrer durante o procedimento cirúrgico.

Essa rebeldia se intensifica quando Ana, que sabia controlar o próprio cérebro e por meio deste o funcionamento do corpo, descobre que poderia com essa capacidade matar o tumor. Ana chama o pai ao hospital e explica-lhe o procedimento, que consiste em desviar o percurso do sangue e, evitando que o sangue irrigasse o tumor, este logo morreria, tornando assim a cirurgia um procedimento dispensável. O senhor Klane, aliviado com a explicação e feliz porque sua filha não ficaria burra, convoca a equipe médica para a qual explica o procedimento. Esta, porém, não acreditando que um ser humano é capaz de controlar o fluxo sanguíneo com a força do cérebro, expõe esse ceticismo ao pai e, diante da resistência deste ao procedimento, resolve recorrer à justiça para enfim realizar a cirurgia. Apesar do brilhantismo da exposição que o senhor Klane fez a respeito do procedimento, o juiz decide a favor da equipe médica.

Essa equipe, amparada pela decisão judicial, faz a cirurgia, extraindo o tumor da menina. O pai, por sua vez, fica acabrunhado, amaldiçoando pelos cantos, revoltado com a obtusidade médica incapaz de entender que o ser humano, com força de vontade e disciplina, pode controlar as funções do corpo com  a mente. Ana é liberada do hospital, o senhor Klane leva-a para casa onde, poucos dias após a alta, começam a jogar xadrez. Ana comete um erro muito sutil na jogada. Ela se perturba. O mundo do sr. Klane cai naquele exato instante. Sua filha ficou burra. O senhor Klane passa a vê-la como um ser imprestável, sem o intelecto poderoso de outrora, ainda que o intelecto que lhe restasse fosse mesmo assim bem mais alto que a média ou mesmo mais alto que o intelecto de todos os gênios que já passaram pela terra, Ana aos olhos do pai era uma menina vegetativa e toma uma decisão corajosa para evitar que sua filha vivesse com tamanha mácula: matá-la, e dá-lhe um tiro.

Após esse ato, o senhor Klane é preso, ou ele mesmo se entrega antes mesmo de a polícia pensar em procurá-lo. Ao tribunal, ele explica, com toda a autoridade de físico renomado, que não cometeu assassinato algum, que os médicos, por o não ouvirem, deixaram a menina retardada, que ela na verdade já estava morta, pois a alma já lhe havia abandonado o corpo durante o procedimento, aquela coisa meio Marco Aurélio de Mello, "sem cérebro sem vida", mas o jurado não aceitou o argumento, viu nele nada mais do que um assassino e decidiu que ele é culpado. Ao ouvir a decisão, o senhor Klane reage com violência e um guarda que cuida da segurança do tribunal o mata com um tiro. Esse guarda, que havia se comovido ou se impressionado com a defesa do senhor Klane, fica perturbado, mas poucos dias após o ato, é visitado pela alma -- ou a parte espectral do cérebro, sei lá -- do senhor Klane que o consola, dizendo que ele não fizera nada de errado com tê-lo matado, uma vez que se encontrava agora numa condição superior, sem sofrer os limites do corpo, é o pensamento em estado puro, que sai voando por aí, expandindo-se sem as limitações do mundo físico.

Do outro livro, do qual não me lembra o título, mas me recorda o nome do autor,  Lopsang Rampa, que é uma obra teórica, só me vem à cabeça uma única passagem, em que ele ensina a técnica para se atravessarem paredes. Ah, eu me lembro que ele falava também do corpo astral, de como alguém poderia deslocar, quando bem entendesse, esse corpo e sair por aí, conhecendo outros mundos, outros países, enquanto o corpo físico ficava na cama dormindo. Voltando à técnica, bastava que o homem se concentrasse, talvez olhando para um ponto específico da parede e concentrasse sua força mental para fragmentar o próprio corpo em várias moléculas, ou átomos, melhor dizendo, em vários pontinhos microscópicos que se separariam uns dos outros possibilitando passar pelos poros da parede e, uma vez do outro lado, unir-se-iam outra vez restaurando ao corpo o mesmo grau de integridade com que se encontrava quando estava do outro lado da parede. Cheguei a tentar fazer isso, mas tudo que consegui foi continuar a ver a parede e concluí que seria mais fácil ou abrir a porta ou pular a janela. Podia não ter o mesmo charme de Gasparzinho, mas ao menos chegaria ao outro lado em bem menos tempo.

Embora eu tivesse anunciado dois livros, vale mencionar um terceiro, não sei o nome do autor, nem do que se trata, uma vez que não consegui ultrapassar das primeiras linhas, além do que me bastava recordar o título retumbante: O livro que mata a morte.

sábado, 15 de julho de 2023

Heberto Sales, parafraseando Rui Castro, no melhor do seu mau humor

Soube, hoje, da morte do talvez último sobrevivente dos meus, de uma ou de outra forma, escassos inimigos. Que Deus, em sua infinita misericórdia, receba a alma desse desgraçado.

Herberto Sales, Subsidiário 3

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Pedra Bonita e sua infição

No termo do Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário -- a Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata,  mas cumulando de riquezas os que houvessem  contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de nevrose...

O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e afirmam os jornais do tempo, em cópia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar inficionado."

in "A Pedra Bonita e Monte Santo", Os sertões, de Euclides da Cunha, edição crítica e Organização Walnice Nogueira Galvão, Sesc Ubu

O trecho em questão impressiona não apenas pela natureza escultural da narrativa, como se o parnasianismo tivesse se realizado em prosa, mas pela forma como a encerra, declarando que era impossível, mesmo depois de tudo acabado, a "permanência no lugar inficionado." Não sei se Euclides da Cunha tinha isto em mente quando assim encerrou esse relato, porém, a ideia mesmo de o lugar permanecer "inficionado" tempos após o ocorrido, é assombrosa, de uma força poética a que talvez poucos poemas tivessem alcançado, a saber, é algo como um símile que ilustra esse sacrifício tenebroso que ainda iria assombrar o país por muito tempo, moldando-lhe o espírito, como de resto aconteceu à personagem Quaderna, do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna -- como aliás, ao que parece, é a expressão de um drama íntimo do mesmo Suassuna que carregou por décadas a fio a dor pelo pai assassinado e --, antes dele, no díptico de José Lins do Rego, Pedra Bonita e Cangaceiros, em que uma família inteira infeccionou-se por aquele massacre, inficionando, por sua vez, todos ao redor, dando origem a cangaceiros e estupradores, também apodrecendo as instituições, e por fim corroendo a alma da matriarca, até então uma mulher de muita fé, que, não suportando mais o peso dessa história e suas consequências, tomada pelo ressentimento, pelo ódio e pela loucura, com ver seus filhos serem reduzidos a meras máquinas de matar, se enforca numa casinha da fazenda em que se escondia das forças do governo que estavam caçando seu filho Aparício, chefe do cangaço.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Os longos vazios, uma nota sobre um conto de Clarice Lispector

Lendo o conto "O triunfo", de Clarice Lispector, do livro Primeiras histórias, me lembrei do que Pedro Sette-Câmara comentou no Telegram sobre a primeira parte de As horas de Katharina, de Bruno Tolentino, sobre os silêncios que hoje, na era das telas e toda sorte de diversão, não temos mais, e como isso nos levava a ser bons observadores, que éramos capazes de ter atenção, de nos interessar pelas coisas, de olhar demoradamente para elas. A história narrada no conto é muito simples, uma mulher acorda numa casa retirada, numa rua silenciosa, talvez uma casa de campo, uma chácara, e dá-se conta de que o amado dela não está mais ao seu lado, e lembra-se de que se irritara com ela, alegando que lhe tirava a concentração necessária para escrever um romance, que ela sempre se mostrava solícita nos momentos em que ele não queria conversar com ninguém, e resolve ir embora, para um lugar onde suas aspirações intelectuais fossem plenamente respeitadas, e ela, por sua vez, alimenta a esperança de que ele volte (esperança essa que aumenta quando depara, decepcionada, uma confissão de sensação de "mediocridade" escrita num papel que por acaso encontrara, tornando-o assim uma figura por algum momento desinteressante, vulnerável), que lhe diga que foi um mal entendido, uma brincadeira e, enquanto isso, olha as coisas ao redor, lava roupa, toma banho... Enfim, em meio a tanto silêncio, o leitor não deve esperar as peripécias narrativas, mas, por outro lado, depara as modulações do espírito humano muito bem observadas e descritas, e muito bem mimetizadas por uma escrita sinuosa, mas uma sinuosidade sutil, sem obscuridades, que mostra domínio pleno da música da língua. Tenho a impressão de que na era da internet escrever assim e sobre esses assuntos não é mais possível, ao menos não me parece crível.

Da Pedra Bonita e Os cangaceiros, na revista Unamuno


 Mais um texto de minha autoria para a revista Unamuno, dessa vez sobre Pedra bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego. Segue o link: https://unamuno.com.br/cangaceiros-pedra-bonita/