quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Clarice pura empatia

Numa cena da série Clarice, disponível na Prime Vídeo, baseada no filme e no livro O silêncio dos inocentes, aparece a personagem  Julia, que é  travesti, interpretada por um ator igualmente travesti chamado Jen Richards. A série, que não é lá grande coisa, ao menos é do tipo que leva o espectador a lhe acompanhar o desenvolvimento da trama. 

Acontece, porém, que em determinado momento essa personagem, ao colaborar nas investigações empreendidas por uma equipe do FBI contra os atos da empresa da qual é funcionária, é chantageada pelo seu chefe malvadão, que deixa claro saber que na verdade ela é ele, e que se não parar de colaborar com as investigações, vai contar para todo mundo que ela é ele, o que a deixa muito assustada, afinal era um segredo que guardou a sete chaves para evitar perseguições e preconceitos. O curioso é que, para quem quer manter segredo, a personagem, ainda que ande bem maquiada, use roupas femininas, roupas chiques, tenha gestos delicados, é visivelmente troncuda, corpulenta mesmo, rosto viril, de modo que não se entende como passou pela cabeça do chefe malvadão chantageá-la com algo que é muito evidente e ela, por sua vez, ficar com medo disso. É algo tão absurdo que nos episódios seguintes essa chantagem não mais é mencionada, é como se nunca tivesse havido, e o malvadão resolve fazer o que era mais lógico fazer, assustá-la com o seu poder econômico e criminoso. Claro que essa chantagem fuleira foi uma maneira evidente de forçar a nota e assim denunciar o preconceito que condena os travestis à invisibilidade. Outra coisa, já entra em cena dando um baita sermão em Clarice por esta nada fazer contra os comentários na imprensa a respeito de Bufallo Bill ser travesti, levando, por conseguinte, a população ao erro de acreditar que todo travesti é como ele um assassino de fato ou em potencial, sermão esse que é também uma indireta tanto ao autor do livro, em que a série se baseia, como ao filme O silêncio dos inocentes, de 1991. 

Não há nenhum problema nem deveria causar espécie que travestis possam trabalhar como atores e desempenhar papel de alguma personagem travesti. O problema é que em vez de se criar uma narrativa com essa personagem, usam-na como chicote contra os preconceitos da sociedade ou, como se diz, sua transfobia, abrindo-se mão de se construírem personagens ou  de se fazerem  filmes ou séries, substituindo-os por campanhas de conscientização ou de treinamento de sensibilidades, no melhor estilo 1984 ou como o procedimento "Ludovico", do livro Laranja mecânica.

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