sexta-feira, 7 de julho de 2023

Pedra Bonita e sua infição

No termo do Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário -- a Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata,  mas cumulando de riquezas os que houvessem  contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de nevrose...

O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e afirmam os jornais do tempo, em cópia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar inficionado."

in "A Pedra Bonita e Monte Santo", Os sertões, de Euclides da Cunha, edição crítica e Organização Walnice Nogueira Galvão, Sesc Ubu

O trecho em questão impressiona não apenas pela natureza escultural da narrativa, como se o parnasianismo tivesse se realizado em prosa, mas pela forma como a encerra, declarando que era impossível, mesmo depois de tudo acabado, a "permanência no lugar inficionado." Não sei se Euclides da Cunha tinha isto em mente quando assim encerrou esse relato, porém, a ideia mesmo de o lugar permanecer "inficionado" tempos após o ocorrido, é assombrosa, de uma força poética a que talvez poucos poemas tivessem alcançado, a saber, é algo como um símile que ilustra esse sacrifício tenebroso que ainda iria assombrar o país por muito tempo, moldando-lhe o espírito, como de resto aconteceu à personagem Quaderna, do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna -- como aliás, ao que parece, é a expressão de um drama íntimo do mesmo Suassuna que carregou por décadas a fio a dor pelo pai assassinado e --, antes dele, no díptico de José Lins do Rego, Pedra Bonita e Cangaceiros, em que uma família inteira infeccionou-se por aquele massacre, inficionando, por sua vez, todos ao redor, dando origem a cangaceiros e estupradores, também apodrecendo as instituições, e por fim corroendo a alma da matriarca, até então uma mulher de muita fé, que, não suportando mais o peso dessa história e suas consequências, tomada pelo ressentimento, pelo ódio e pela loucura, com ver seus filhos serem reduzidos a meras máquinas de matar, se enforca numa casinha da fazenda em que se escondia das forças do governo que estavam caçando seu filho Aparício, chefe do cangaço.

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