quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Lançamento de Rezas, de João Filho, em Salvador, hoje

 



Reza VIII -- João Filho

Pai, aqui estou, imundo como todos.
A sujeira orgulhosa de uma vida.
O refrão dessa vida é choro e choro,
vai subindo de um poço sem saída.

Venho pedir. Não sei pedir, imploro,
pedir como se fosse despedida.
Ensina-me a pedir o que não morre,
e o que morre ser minha medida.

Pai, aqui estou. Repito essas misérias,
precária como incerta é a matéria,
quero chorar por Ti e não por mim.

Que o mundo diminua e cresça a Cruz,
num incêndio minúsculo de luz --
fósforo que fulgura antes do fim!
 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Livre de atualizações

No dia seguinte partiu Félix para Tijuca, onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois. Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade: não leu jornais nem abriu cartas de amigos.

A ressurreição, de Machado de Assis, capítulo IV

Invejável esse Félix, embora fosse, como se diz na linguagem jovem de hoje um curtidor(hoje talvez não tão jovem), não era escravo de alguns caprichos das agitações que cercam pessoas de sua personalidade e condição financeira. Como o informa o trecho acima, foi capaz de ir a um lugar aprazível, retirado, longe das baladas da época, e não assistir ao Jornal Nacional nem acompanhar as notícias eternamente fresquinhas da internet nem abrir o whatsapp. E para completar,  não sofria do mal que aflige as  personagens de Houllebecq, que apostam todas as fichas no turismo:

Olhe, os meus dois pólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca passei  desses dois extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas eu acho felicidade nessa mesma monotonia.


domingo, 3 de setembro de 2023

Trecho de "Só que um pouco pior. Resposta a alguns amigos", de Michel Houellebecq

(...) Sobre a peste [Covid 19] tivemos muita coisa, ao longo dos séculos, os escritores sempre se interessaram  pela peste. Mas sobre isto, duvido muito. Para começar, não acredito nem por um segundo em declarações do tipo "nunca mais nada será como dantes". Pelo contrário, tudo ficará exactamente como era. O desenrolar desta epidemia é até notavelmente normal. O Ocidente não é por direito divino, para toda a eternidade, a zona mais rica e desenvolvida do mundo; isso acabou, já há algum tempo, não é propriamente novidade. Se examinarmos até, em detalhe, o que se passa, a França sai-se um pouco melhor do que a Espanha e do que a Itália, mas menos bem do que a Alemanha; também aqui não encontramos propriamente uma grande surpresa.

Pelo contrário, o coronavírus deveria ter, como principal resultado, a aceleração de certas mutações em curso. Desde há alguns anos, o conjunto das evoluções tecnológicas, sejam elas menores (o streaming de vídeo, o pagamento sem contacto) ou maiores (o teletrabalho, as compras pela Internet, as redes sociais), tiveram como principal consequência (ou principal objectivo?) diminuir os contactos materiais, e sobretudo os contactos humanos. A epidemia do coronavírus  oferece uma magnifica razão de ser para esta tendência pesada: a de uma certa absolescência que parece afectar as relações humanas. O que me faz pensar numa comparação luminosa que encontrei num texto anti-PMA [Procriação Medicamente Assistida, nota do tradutor] redigida por um grupo de activistas denominado "Os chimpanzés do futuro"(descobri estas pessoas na Internet; nunca disse que a Internet só tinha inconvenientes). Por isso, vou citá-los: "Dentro em breve, fazer filhos pelos próprios meios, gratuitamente  e ao calhas, parecerá tão incongruente como hoje andar à boleia sem uma plataforma web." A partilha de carros, a partilha de aluguer da casa, esse tipo de coisas, enfim, temos as utopias que merecemos, mas passo bem sem elas.

Será igualmente falso afirmar que redescobrimos o trágico, a morte, a finitude, etc. A tendência desde há meio século, bem descrita por Philippe  Ariès, foi a de dissimular a morte, tanto quanto possível; pois bem, nunca a morte terá sido tão discreta como nas últimas semanas. As pessoas morrem sozinhas nos seus quartos de hospital ou de EHPAD [... equivalentes a casas de repouso ou lares de terceira idade, nota do tradutor], enterram-nas assim que morrem (ou serão cremadas? a cremação está mais conforme ao espírito do tempo), sem chamar ninguém, em segredo. Mortos que partem sem que haja testemunhos disso, as vítimas resumidas a uma unidade nas estatísticas dos mortos diários, a angústia que se espalha pela população à medida que os números totais aumentam, tudo isto tem qualquer coisa de estranhamente abstracto.

Um outro número ganhou importância nestas semanas, o da idade dos doentes. Até quando é suposto reanimá-los e tratá-los? Onde colocar o limite? Nos 70, nos 75, nos 80 anos? Isso depende, aparentemente, da região do mundo onde se vive; mas nunca, em todo caso, foi dito com um tão tranquilo impudor que nem todas as vidas valem o mesmo; que a partir de uma certa idade (70, 75, 80 anos?)), é um pouco como se já estivéssemos mortos.

Todas estas tendências, já o disse, existiam antes do coronavírus; mas manifestaram-se agora com uma maior evidência. Nós não vamos acordar, depois do confinamento, num mundo novo; será o mesmo, só que um pouco pior.

Esta carta foi lida por Augustin Trapenard, aos mícrofones da France Inter, a 4 de Maio de 2020

Tradução de José Mário Silva, Intervenções, Alfaguara, 2021