Não permitas, Senhor, que a minha carne
se confunda outra vez e eu me atrapalhe
e caia como cartas de baralho
o castelo em que entrei para salvar-me.
Teresa castelã, valha o que valha
o meu fervor, o meu fragor de armas,
sustentai-me, rogai que eu não desarme,
que não se apague o fogo meu, de palha,
talvez, mas seja palha de fogueira.
Fogo de auto-da-fé, se necessário,
mas fogo irrevogável, se primeiro
hei de arder que entregar-me ao ilusório.
E se hei de merecer algum martírio
tanto mais duro quanto o assédio é sério.
É curioso -- apesar de não ser
algo incomum nas obras de nosso autor, muito menos nesta -- o esquema de rimas
apresentado neste soneto. A começar pelos tercetos -- analisando aqui do último
verso ao primeiro --,“sério” rima com “ilusório” e com “necessário”, ou seja, a
rima é entre vogais abertas(é, ó e á) seguidas, por sua vez, da combinação de “Rs” vibrantes com terminações em “io”. Já
com relação à “martírio”, a rima é com “primeiro” e “fogueira”. Entre as duas
últimas a identidade é mais clara, mas comunicam com a anterior porque as
tônicas caem na última sílaba poética.
O autor valeu-se aqui de uma
variação das rimas toantes, cuja identidade sonora ocorre apenas nas vogais
tônicas, não necessariamente na relação entre as mesmas vogais. Processo
semelhante ocorre nos quartetos entre “desarme” e “armas”; entre “salvar-me” e “carne”; e entre
“baralho” e “atrapalhe”. No primeiro quarteto, porém, há um complicador: à
primeira vista, “carne”, do primeiro verso, tem mais identidade sonora com
“atrapalhe”, do verso seguinte, do que este com “baralho” que aparentemente
acaba ficando sozinho na jogada.
Para compreender melhor esse
esquema de rimas, baseei-me em dois fenômenos: o da já explicada identidade
sonora entre as vogais tônicas, a qual atenua o valor da identidade sonora
terminada em “e”(carne/atrapalhe) em favor da identidade em
“a”(atrapalhe/baralho). O segundo é o
quarteto seguinte elucidar o primeiro, uma vez que a identidade entre
“valha” e “palha” são mais óbvias. Essas, por
sua vez, rimam com “baralho” e “atrapalhe” do quarteto anterior; assim como
“desarme” e “armas” rimam com “salvar-me” e “carne”, também do anterior,
formando o esquema abba/baab. Esse tipo de rima ou algo próximo, ao que parece, não era incomum
na poesia medieval portuguesa, onde encontramos: “Per ribeira do alto/vi remar
o barco,(...)// Vi remar o navio/U vai o meu amigo”, de Joan Zorro, ou ainda:
“En os verdes prados/vi os verdes bravos,(...)//E con sabor delas/lavei as
garcetas,”, de Pedro Meogo, ambos do século XIII.(The Oxford Book of Portuguese
Verse, XIIth Century – XXth Century, OUP, 1962, p. 1 e 21 )
O comentário pode passar uma
idéia falsa de complicação. Por outro lado,
é uma complicação que se
manifesta apenas na medida em que o leitor procura entender e explicar essa
forma de rimar. Afinal -- eu que li esse poema repetidas vezes e no qual muitas
vezes parei para apreciar-lhe a beleza, e com cujo sentimento que o anima
sempre me emocionei e me identifiquei, que é o sentimento de viver na corda
bamba, na qual a possibilidade de errar
e decepcionar é tão real quanto a própria morte, --, eu mesmo só prestei
atenção ao esquema de rimas quando um amigo a quem o mostrei disse-me que achou
estranha a presença de "sério", o qual encerra o poema, e que
"não rima com nada". De resto, Tolentino é um autor que se utiliza de
muitos truques -- cada qual mais surpreendente que o outro -- e que só se
percebem como tais quando se presta
atenção a eles, e esse "não perceber" aumenta ainda mais o impacto no espírito de quem o lê.
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