O trecho abaixo do romance Às avessas, de Joris-Karl Hyusmans, publicado em 1882 é sem dúvida uma antecipação do que se chama hoje de realidade virtual, da inteligência artificial, enfim de uma série de artifícios tecnológicos pelos quais o homem substitui a realidade pela sua contrafação. Como diria o Eclesiastes, nada de novo sob o sol. Isso, por sinal, não é uma coincidência, não tenho por que duvidar que muitas ideias a serviço da tecnologia têm a literatura como fonte.
Às vezes, de tarde, quando por acaso estava desperto e de pé, Des Esseintes, mandava acionar o jogo de canos e condutores que esvaziavam o aquário e o tornavam a encher de água pura, e ali deitar gotas de essências coloridas, propiciando-se assim, a seu gosto, os tons verdes ou salobros, opalinos ou prateados, que têm os rios de verdade, de conformidade com a cor do céu, o ardor mais ou menos vivo do sol, as ameaças mais ou menos acentuadas de chuva; de conformidade, numa palavra, com as condições da estação e da atmosfera.
Imaginava então achar-se na entreponte de um brigue e contemplava com curiosidade maravilhosos peixes mecânicos, montados como peças de rolojoaria, que passavam diante do vidro da escotilha e se embaraçavam em falsas ervas; ou então, aspirando o aroma de alcatrão que era insuflado no aposento antes de ele ali entrar, examinava, dependuradas à parede, gravuras coloridas representando, como nas agências de paquetes ou do Lloyd, barcos a vapor em rota para Valparaíso e La Plata, e tabelas enquadradas nas quais estavam assinalados os itinerários da linha do Royal Mail Steam Packet, das companhias Lopez e Valéry, os fretes e as escalas de serviços postais do Atlântico.
Depois, quando se cansara de consultar esses indicadores, descansava a vista olhando os cronômetros e as bússolas, os sextantes e os compassos, as chúmeas e os mapas espalhados por sobre uma mesa acima da qual se elevava um único livro, encadernado em pele de foca, as Aventuras de Gordon Pym, especialmente impresso para ele em papel raiado de pura fibra, escolhido folha por folha, com uma gaivota em filigrana.
Podia divisar, finalmente, varas de pescas, redes curtidas, rolos de velas ruças, uma âncora minúscula de cortiça, pintada de preto, tudo isso amontoado perto da porta que comunicava com a cozinha por um corredor guarnecido de estofo acolchoado que absorvia, tanto quanto o corredor entre a sala de jantar e o gabinete de trabalho, todos os odores e todos os ruídos.
Ele obtinha assim, sem sair, de casa, as sensações rápidas, quase instantâneas, de uma viagem de longo curso, e esse gosto do deslocamento que só existe, em suma, na recordação, quase nunca no presente, no próprio instante em que se efetua; desfrutava-o plenamente, à vontade, sem fadiga, sem preocupações, naquela cabine cuja desordem rebuscada, cujo arranjo transitório e instalação como que temporária correspondiam assaz exatamente à sua estada passageira ali, ao tempo limitado de suas refeições, e contrastava de maneira absoluta com o seu gabinete de trabalho, numa peça definitiva, arrumada, bem assente, equipada para a firme manutenção de uma existência caseira.
O movimento lhe parecia, de resto, inútil, e a imaginação podia, no seu entender, facilmente substituir-se à realidade vulgar dos fatos. Reputava ser possível contentar os desejos tidos por mais difíceis de satisfazer na vida normal mediante um ligeiro subterfúgio, uma sofisticação aproximativa do objeto perseguido por eles. Assim é que, de toda evidência, os gastrônomos se deliciam hoje em dia, nos restaurantes renomados pela excelência de suas adegas, bebendo vinhos de marca fabricados com as baixas vinhaças tratadas de acordo com o método do sr. Pasteur. Ora, verdadeiros ou falsos, esses vinhos têm o mesmo aroma, a mesma cor, o mesmo buquê, e, por conseguinte, o prazer que se experimenta degustando tais beberagens alteradas e factícias é absolutamente idênticos àqueles que se experimentaria saboreando o vinho natural e puro, inecontrável mesmo a peso de ouro.
Transportando este capcioso desvio, esta habilidosa mentira para o mundo do intelecto, ninguém põe em dúvida que se possa, tão facilmente quanto no mundo material, desfrutar delícias quiméricas semelhantes, em tudo e por tudo, às verdadeiras; ninguém põe em dúvida, por exemplo, que uma pessoa possa se entregar a longas explorações, desde o cantinho de sua lareira, auxiliando, se necessário, o espírito renitente ou lento com a leitura sugestiva de uma obra que narre viagens a lugares longínquos; ninguém põe em dúvida, tampouco, que se possa -- sem sair de Paris -- desfrutar a benéfica impressão de um banho de mar: basta ir, de boa-fé, ao banho Vigier, instalado num barco em pleno Sena.
Lá, mandando-se salgar a água da banheira e acrescentar-lhe, de acordo com a fórmula do Codex, sulfato de sódio, cloridrato de magnésio e de sódio; tirando-se de uma caixa, cuidadosamente cerrada por um passo de de rosca, um rolo de cordel ou um pedacinho de cabo que se foi procurar especialmente numa dessas grandes cordoarias cujos vastos armazéns e subsolos recendem a odores de maresia e de porto; apirando-se estes perfumes conservados ainda pelo cordel ou pedaço de cabo; consultando-se a fotografia exata do cassino e lendo-se com ardor o guia Joanne que descreve as belezas da praia onde se desejaria estar; deixando-se embalar pelas vagas que se ergue, na banheira, a esteira dos barcos de passeios ao passarem rente à barcaça dos banhos; escutando-se, por fim, os gemidos do vento engolfado sob os arcos e o ruído surdo dos ônibus que rolam, a dois passos acima de vós, sobre a ponte Royal, a ilusão de mar é inegável, imperiosa, segura.
Tudo está em saber a pessoa arranjar-se, concentrar seu espírito num único ponto, abstrair-se o suficiente para provocar a alucinação e poder substituir a realidade propriamente dita pelo sonho dela.
O artifício parecia outrossim a Des Esseintes a marca distintiva do gênio humano.
Como ele costumava dizer, a natureza já teve a sua vez; cansou definitivamente, pela desgastante uniformidade das suas paisagens e dos seus céus, a paciência atenta dos refinados. No fundo, que chatice de especialista confinado a seu papel; que mesquinharia de lojista apegando-se a determinado artigo com exclusão dos demais; que monótona coleção de prados e árvores, que banal agência de montanhas e mares!
Não existe, aliás, nenhuma de suas invenções reputada tão sutil ou grandiosa que o gênio humano não possa criar; nenhuma floresta de Fontainebleau, nenhum luar que cenários inundados de jatos elétricos não reproduzem; nenhuma cascata que a hidráulica não imite se nisso se empenhar; nenhum rochedo que o papelão não assimile; nenhuma flor que tafetás ilusórios e delicados papéis pintados não igualem!
Não há dúvida de que essa sempiterna maçadora esgotou a indulgente admiração dos verdadeiros artistas e é chegado o momento de substituí-la, tanto quanto possível, pelo artifício.
Penguin-Companhia, 2011, tradução de José Paulo Paes, pp. 86-89