Movido
pela leitura de Esquecidos & superestimados, de Rodrigo Gurgel, passei das "assomadas gnáissicas
caprichosamente cindidas em planos quase
geométricos, à maneira de silhares; suportei "a descrição de 'cristais de
feldspato', 'estratos de um talcoxisto', 'formações silurianas'..."(p. 50)
e por aí vai, até chegar feliz da vida à página 23, onde me deparo com a
passagem a que Gurgel – em subdivisão de seu ensaio "Combate
interminável" – chama de "Misterioso
defunto"(p.49).
Esse
caminho bastante – perdoai-me o
neologismo – "britado" é ao mesmo tempo uma promessa. Mais uma vez,
Gurgel: "Nesse momento, quando suas vísceras começam a gemer, salva-o da
escuridão o narrador, abraçado à tarefa de explicar as características climáticas,
mudando subitamente a inflexão da voz para tornar-se íntimo, lírico..."
(P.50). Este é o momento em que o crítico se concentra na figura do já aludido
"misterioso defunto" e eu, por minha vez, me concentro numa passagem
que chamaria de "luta pluvial":
Essa
passagem também me remeteu a outra sobre a qual já escrevera em postagem anterior:
Uma
pequena batida na vidraça, como se qualquer coisa a tivesse atingido, seguida
de uma ampla queda leve como grãos de areia que deixassem tombar do alto de uma
janela, em cima, e depois a queda estendendo-se, regulando-se, adotando um
ritmo, tornando-se fluida, sonora, musical, inumerável, universal: a chuva.
Esse
trecho, que pertence a No caminho de Swann de Proust, em
tradução exemplar de Mário Quintana, já comparei com a famosa passagem "O
estouro da boiada", dos Sertões. Há outra, porém, com que se conforma:
Segundo
numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem
a terra. A meio caminho se evaporam
entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para,
outra vez condensando-se,
precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a
princípio não umedecem, tornando ainda
aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído
sobre chapas incandescentes; para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e
contínua, até que se formem, afinal, os
primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em
despenhos pelas encostas, afluindo em
regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se
tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando- se, estes, em rios
barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam
velozmente os esgalhos das árvores
arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas
revoltas e escuras...
São
duas passagens que se desenvolvem segundo estrutura semelhante – exceto pela posição
do sujeito –, seguindo a mesma gradação de períodos longos, ainda que o
euclidiano seja, pela natureza mesma do evento, bem mais longo. A diferença
limita-se praticamente ao desenvolvimento mais breve do texto proustiano.
Apenas um trecho parentético separa "pequena batida na vidraça" de
"uma ampla queda leve como grãos de areia", ou por outra, de uma gota de várias outras gotas. O fenômeno pluvial, certo devido ao
amolecimento do clima europeu, não demora para ganhar corpo. A chuva
euclidiana, por sua vez, é menos uma chuva que um ato de insistência, de luta
renhida. Após um sumário, que constitui o período de abertura, vem outro
introduzido por uma locução adverbial "A meio caminho", no qual o
fenômeno quer se manifestar, mas só
logra acontecer a partir da quinta
linha e concluindo-se, após muitas idas e voltas, apenas na nona. E tamanho esforço resulta numa
espécie de desafio à chuva nostálgica parisiense e apresenta assim um curioso
paralelismo, em que uma chuva "tornando-se fluida, sonora, musical,
inumerável, universal" tivesse de competir em grande desvantagem com
"concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando- se,
estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas
correntezas passam velozmente os
esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma
onda, no mesmo caos de águas revoltas e
escuras..."